
A tísica e a mobilidade urbana
Por Gustavo Krause*, publicado no caderno Opinião do JC, em 17/12/2011
“Quem atalha os males com bastante antecedência pode, sem grande esforço, dar-lhe remédio, quem espera, porém que eles se aproximem, debalde tentará debelá-los, a doença tornou-se incurável. E ocorre com esta o que os médicos dizem a respeito da tísica: isto é, ser ela no princípio fácil de curar e difícil de perceber, mas, se não foi percebida e tratada no início, tornar-se, com o andar do tempo, fácil de perceber e difícil de curar”.
Está escrito no capítulo III de O príncipe, de Maquiavel. Com efeito, as reflexões e os conceitos maquiavelianos não se restringem à política: têm aplicação universal, atemporal e se ajustam, perfeitamente, à grave enfermidade que acomete a mobilidade urbana do Recife.
No caso, a doença entupiu de tal maneira as “artérias” que ameaça paralisar, por inteiro, a cidade. O Recife infartou. No começo, era difícil de ver e fácil de curar, agora é fácil de ver e difícil de curar, tal qual na descrição de Maquiavel no caso da tísica.
Sobre o assunto, fui honrado com a visita da Comissão de Mobilidade da Alepe, composta pelos deputados José Maurício, Gustavo Negromonte, Vinicius Labanca e Júlio Cavalcanti, presidida pelo deputado Silvio Costa Filho.
Fui direto ao ponto: o problema é do tamanho do erro histórico que fez prevalecer o transporte individual, o automóvel, sobre o transporte coletivo, as rodovias sobre as ferrovias, a construção da civilização sobre pneus movida por um ser composto de cabeças, tronco e rodas, submetido aos caprichos reais e simbólicos de sua excelência, o automóvel. Ao que se soma a expansão urbana desordenada.
Logo, não há solução simples, barata e rápida. Qualquer promessa dos candidatos a prefeito cairá na vala comum da demagogia desde que não contemple a real gravidade do problema.
A reversão da prioridade do transporte individual sobre o coletivo e a ordenação da expansão urbana ferem interesses concretos e esbarram em profunda resistência de ordem cultural com alguns agravantes: ausência de planejamento urbano/metropolitano com visão de médio e longo prazo, fragilidade e ineficiência dos órgãos de gestão de trânsito.
A propósito, cabe recordar a oposição política e a reação cultural às iniciativas que privilegiavam o ônibus a exemplo do corredor exclusivo da Caxangá (completa trinta anos como primeiro e único porque o da Boa Vista é um monstrengo), da recuperação da frota de troleibus, o Terminal Integrado de Passageiros (TIP), hoje, largado ao mais completo abandono e o amplo estacionamento periférico da Joana Bezerra, injuriado impiedosamente porque incompreendido como mecanismo de desincentivo ao uso do automóvel no Centro do Recife.
Não é viável enfrentar o monumental problema da mobilidade urbana sem que uma agenda comum seja politicamente pactuada pelos candidatos em sintonia com a sociedade civil. Sem este compromisso que transcenda interesses imediatos, não há gestor, não há cirurgia urbana que evite o colapso. Não há outro caminho, senão abrir novos caminhos para que o ônibus reassuma seu papel de ator principal no modelo de transporte coletivo sob as formas modernas de veículos articulados (BRT, VLP – veículo leve sobre pneus, ônibus guiados por sistemas de canaletas e dispositivos magnéticos), ainda que cheguem ao Recife com o atraso de décadas.
Felizmente, o debate toma conta da sociedade. A imprensa tem assumido um papel importante, com destaque para a série do JC sobre o tema. Todos são vítimas da má qualidade de vida, do estresse, dos acidentes e da limitação do prosaico exercício do direito de ir e vir dos cidadãos.
Importante registrar que a humanidade nasceu no campo, mudou-se e vai continuar se mudando para as cidades, acalentando o antigo sonho dos gregos de que a vida nas cidades é boa e segura.
*Gustavo Krause foi prefeito do Recife